segunda-feira, 7 de junho de 2010

O ESPECTRO MORAL


O ESPECTRO MORAL

“Nunca é demais insistir que há mais diferenças hierárquicas entre os homens do que imagina a nossa vã sociologia.” Olavo de Carvalho

“... Quando os teus pés entrarem na cidade, a criança certamente morrerá. E todo o Israel deveras o lamentará e o enterrará, porque só este de Jeroboão entrará numa sepultura, visto que nele se achou algo de bom para com Jeová, o Deus de Israel, na casa de Jeroboão”. 1Reis 14:12, 13.


                              O Fragmento textual acima está contido no códice sacrossanto dos judeus e cristãos e conta que Deus, Entidade Suprema, onisciente, ao ordenar a morte de toda a “ímpia” dinastia do Rei Jeroboão, por motivos religiosos e políticos, permitiu que somente um dos condenados pela fatwa, tivesse um enterro decente. Deus mandou matar alguns. Destes, só um foi enterrado. O ponto a ser destacado aqui é: Por que ele foi enterrado e os outros não? O texto responde: “nele tinha algo de bom”. Mesmo ele segundo o relato, fosse mal e morresse junto com os outros, havia uma nuança, um grauzinho a menos de maldade que os outros. Deus como se tivesse peneirado e visto isso. Morreu como maldito, mas tinha uma coisinha boa nele. E Deus o recompensou, permitindo que fosse enterrado. Dos malignos e ele era um, ele era o que estava mais perto de Deus relativamente em comparação aos outros condenados. Esta história acima visa demonstra um aspecto da realidade que aparentemente não é percebido pela maioria das pessoas, mesmo as mais religiosas quando se trata de julgar o caráter moral de outros. Quando declaram que alguém é mal, isto quase nunca é relativizado, graduado, nuançado, quando o outro é mal, é mal integralmente, quando é bom, idem. Mas geralmente quando se trata de julgarem a si mesmas moralmente aí é que as pessoas começam a atenuar suas ações e motivações, dizendo-se não tão más como se mostraram. O nome que damos a este procedimento binário inflexível no julgamento ético é MANIQUEISMO, de uma lado o bem absoluto e do outro o mal absoluto irreconciliáveis, não intercomunicáveis. Em lógica damos a este procedimento catalogante moral o nome de uma falácia que se chama exclusão do meio-termo, ou dicotomia falsa. Ou é uma coisa ou outra, ou oito ou oitenta como o povão gosta de falar. É considerado apenas os extremos opostos e ignorado entre eles um continuum de graus intermediários. Esta exclusão do meio-termo, esta dicotomia, geralmente quando se trata do mundo real poucas vezes se mostra correta, mesmo nas coisas que aparentemente são antagônicas, contrárias ou mesmo contraditórias. Ela se manifesta mais no mundo ideal platônico, nas ideias, nos conceitos, quase nunca em coisas ou fenômenos naturais, ou mesmo nos atos psíquicos. Por exemplo, se digo que a luz não se coaduna com as trevas, ou o dia com a noite não vamos nos esquecer que entre estes dois limites de luminosidade existe um meio termo sim! Que são nada mais que a aurora e o arrebol, o entardecer e o amanhecer, que gradualmente transforma uma coisa na outra e vice-versa. Na verdade são nestas horas, nesta penumbra indistinta entre dois limites que temos as mais belas visões do dia, quando o sol se põe ou quando o sol nasce, nos proporcionando deleites poéticos. Então devemos nos lembra que entre o preto e o branco existe o cinza e que até mesmo este cinza é tonalizado pelos graus de preto e branco, o dia amanhece aos poucos e lentamente a escuridão vai regredindo e a luz do dia vai aumentando progressivamente. Já pensou se as transformações diuturnas fossem digitais, binárias? É dia e de repente fica tudo claro de uma vez, como quando nós ascendemos uma lâmpada num quarto escuro? Só numa ficção das mais alucinadas não é mesmo? Claro que até neste fenômeno claro/escuro interrompido pela lâmpada elétrica existe um percurso da luz tomando as trevas paulatinamente, existe todo um trajeto que a luminosidade percorre até atingir nosso sistema visual, mas na pratica não percebemos isto, e a coisa se mostra instantânea. Acontece que é justamente assim que as pessoas julgam moralmente as outras, digitalmente, binariamente. Elas parecem não se dar conta que entre um assaltante de bancos que mata ou intimida, um ladrão de carteiras(punguista) que não põe em risco a vida do outro e um estelionatário que usa de conversa diversionista para me iludir e me fazer dar voluntariamente meu dinheiro a ele, não há graduação moral entre eles. O mesmo valendo para as pessoas que chamamos de boas, as pessoas não percebem que existem graus de bondade. Quem é melhor o Batman ou o Super-homem, o Superman ou o Homem-aranha? No caso da primeira comparação quase todos dirão que o Superman pois ele é mais perfeito, mais santo que o Batman, pois o Superman nunca matou niguém, nunca mente, não usa máscara, não tem um passado obscuro, não é um justiceiro como o Homem-morcego. Ora os dois são bons, são super-heróis, mas indubitavelmente o Kriptoniano tem uma alma mais pura, uma ação mais correta que Batman que nós últimos filmes tem se mostrado preso em dilemas morais terríveis provocado pelo Curinga, que também se mostrou menos mal por ser mais doido devido a traumas angustiantes. Perceberam o ponto que quero atingir? E o Homem-aranha? O aracnídeo seria mais ou menos um meio-termo entre os dois outros super-heróis mencionados. Ele só prende, é um jovem doce, mas teve problemas de identidade, provou um pouco do mal com aquele gosma negra do espaço, usa máscara, é mais obscuro, embora não tenha um visual tão agressivo quanto Batman, até mesmo usa as cores do Superman, vive brigando com seus ex-amigos que se tornam seus super-inimigos, embora não seja de todo culpado. Homem-aranha é um intermediário entre o Batman e o Superman. Este último é de uma perfeição moral de aço. Embora digam que ele seja um símbolo da América, com as cores de sua bandeira, eu particularmente o acho mais um Jesus Cristo, um homem perfeito idealmente. Afinal o Capitão América já é a encarnação do símbolo americano. Saindo dos quadrinhos para a vida real o que quero exemplificar com isto tudo é que existe uma escala moral, uma graduação ou gradação que foi mencionada por Platão, Por Dante, por Maomé, pela Bíblia e outras tradições, que é tão evidente que só mesmo as narrativas fabulosas de Bandidos e mocinhos, de bruxas e princesas poderiam nós condicionar a deixar de lado uma constatação intuitiva do mundo real para darmos lugar a uma idealização estanque de dois compartimentos morais separados. Ora, até mesmo entre o céu e o inferno inventaram um purgatório. Não querendo entrar profundamento nas causas deste maniqueismo moral, podemos comentar superficialmente que a cultura em geral, bem como as religiões, ou uma interpretação errada da religião tem sua parcela de contribuição desta exclusão do meio termo moral, mais açabarcar agora esta causa demandaria muito esforço. Se eu fosse um teólogo eu poderia dizer que como as divindades estavam apercebidas de que o homem não entenderia mesmo, na sua atual condição de evolução espiritual este conceito gradualista, jogou as leis morais grosso modo, nunca classificação abrangente, tosca, para depois ir afinando, sofisticando sua compreensão moral. Mas não sou teólogo, não diria isto. O presente escrito visará demonstrar ensaisticamente que não só existe esta gradação, como existe todo um ESPECTRO MORAL, é até mesmo uma hierarquia moral para o bem ou para o mal. O próprio conceito de grau, já subtende níveis, e níveis, uma hierarquia. Platão disse que entre o quente e o frio existe o morno, esta média, esta mediocridade ética é o que vamos explicitar aqui, procurando preencher o abismo ontológico que separa um santo de um criminoso com as graduações entre eles. Bem, se eu fosse um teólogo eu diria que Cristo vomitaria de sua boca esta mornidão, mas eu não sou teólogo, não diria isto, diria que se ele cospe o morno, o médio, porque não cospe uma dos extremos desagradáveis? Ou o quente ou o frio? Não era disto aqui a que Ele se referia, não vem ao caso aqui. Então resumindo: Entre a dicotomia bem e mal existe um termo médio, como entre o grande e o pequeno existe o médio. Este conceito usado classificatoriamente para julgar moralmente as pessoas nós mostrará que elas são boas, más e intermédias. Para demonstrar que existe uma percepção deste esquema gradualista de níveis morais vamos fazer um apanhado histórico de grandes homens espirituais do passado que o mencionaram de passagem ainda que não se detivessem num aprofundamento deste tema ético. Quem leu a obra de Dante a Divina Comedia percebera que mesmo no Inferno, um local de tormento eterno e aflições hediondas existe toda uma graduação, uma hierarquização em níveis quanto a classificação dos pecadores, o mesmo acontece com o purgatório e o céu. A imagem gráfica que se destaca do inferno de Dante é um cone cuja parte mais fina em direção ao centro do inferno vai se afunilando conforme os pecados vão se agravando. Nos primeiros círculos do inferno de Dante que é onde estão os condenados por incontinência, podemos perceber que tanto o número de almas, quanto a região onde estão e maior que no centro do inferno, no último circulo que tanto é menor quanto tem menos pecadores mais graves, os que pecaram por malicia não por incontinência ou bestialidade...
 

INFERNO
 
                                   Esta imagem de um cone invertido pode ser transposta para a de uma piramide invertida. As hierarquias são geralmente representadas por uma piramide e e o que acontece aqui, apenas que a piramide está de cabeça para baixo, onde que, quanto mais o pecado vai aumentando em grau, vai diminuindo o numero das almas pecadoras...
 

PURGATÓRIO

                                    Que os mundos do além de Alighiere não podem ser entendidos apenas no sentido literal mas também como símbolos ou representação de algo mais, foi dito por ele mesmo: “ O sentido desta obra não e simples; ao contrario ela e polissensa, pois outro e o sentido literal, outro aquele das coisas significadas.”
 

                                    Se observarmos a montanha do purgatório dantesca podemos notar que ela é o oposto simétrico do poço do inferno dantesca, poderíamos até num exercício de imaginação, arrancarmos a montanha e jogarmos dentro do poço. Ela se encaixaria com precisão, como um cone numa cava cônica. Este simbolismo, esta topografia imaginária representa dados matemáticos-geométricos de uma realidade moral que envolve as almas humanas, não num mundo do além, mas no mundo dos vivos. Interpreto que estes dois simbolismos do purgatório e do inferno representam uma tosca, porém realmente verdadeira classificação moral, uma hierarquia moral. Se pegarmos a pirâmide invertida do inferno e juntarmos à pirâmide regular do purgatório teremos um octaedro, ou visto de uma perspectiva chapada, se juntarmos os dois triângulos angariaremos uma losângo, onde numa ponta superior teremos os santos e numa ponta inferior os iníquos, e entre estes uma maioria escalonada nas suas respectivas posições dentro do losango, sendo que a imensa maioria das almas, das pessoas estarão no meio moral, que é a parte de maior área da figura.
 

Juntando inferno e purgatório.

                                 Poderia fazer um gráfico, mas aqui não há recursos, mas espero que o leitor tenha entendido. Quanto ao céu de Dante pode ser descartado pois apresenta perfeição, e por isto é uma ideal, e não representa o mundo real, seria um referência para as almas na ponta inferior e superior e demais almas no octaedro ou losângo ético. Assim como os economistas e sociólogos trabalham com pirâmides sócio-econômicas, com classes sociais, assim como na hierarquia militar existe uma pirâmide que a representa distribuindo os graus de poder de comando, diminuindo em número e aumentando em poder, assim como no reino animal existe uma cadeia alimentar exemplificada por uma pirâmide onde no topo, temos respectivamente no mar, terra e ar, o tubarão, o leão e a águia como menores em número mas poderosos em poder como predadores supremos dos herbívoros imensamente mais numerosos, assim como em todo sistema social que existe por mais simples que seja, a figura da pirâmide hierárquica se destaca, para ... este octaedro hierárquico como medidor de valoração de santidade/impiedade.
 
                           Por que esta hierarquia é diferente das outras, porque esta figura peculiar e não uma pirâmide? Porque é uma medida estatística cuja base em número é igual ao topo em número, como disse Platão no Fédon: “...Se procedesse com juízo, notaria que bem poucos homens são absolutamente bons ou maus, e que inúmeros são os que se encontram entre esses extremos”. E então poderíamos perguntar junto com o interlocutor de Sócrates: Que queres dizer? “-Que se dá aqui o mesmo que se dá a propósito das coisas pequeniníssimas e grandíssimas – respondeu Sócrates -Achas que pode haver coisa mais rara do que um homem enormemente grande ou extraordinariamente pequeno? E isso vale também para o cão, como para qualquer outra coisa. E não te parece também que é muito difícil encontrar-se um ser rapidíssimo e uma vagarosíssimo, assim como um belíssimo e um feiíssimo, ou um alvo e outro muito negro? Acaso não notastes por ti mesmo como são raros em todas essas coisas os pontos extremos, ao passo que os termos médios são muito mais numerosos? - De fato. -De modo que se fosse feito um concurso de maldade, não te parece também que apenas uns poucos seriam premiados ?” Na hierarquia social muitos são milionários, a maioria é pobre, embora se fosse levar esta hierarquia as últimas consequências os muito miseráveis não são mais do que os muito pobres. Na hierarquia moral muitos são pios, a maioria é mediana e outra minoria extrema é ímpia, dando assim a forma do LOSANGO ÉTICO.
 
                          Michel de Montaigne, um filósofo que me é mais acessível, afirmou no seu ensaio Da embriaguez que: “...não levar em consideração a escala de gravidade dos pecados, confundindo-os, é por certo perigoso, pois disso tirarão vantagem os assassinos, os traidores e os tiranos. Não é justo que sua consciência se alivie com a ideia de que fulano é preguiçoso, lascivo ou pouco assíduo a missa. Todos tem tendência para agravar o pecado de outrem e atenuar o próprio. E não raro até as próprias pessoas encarregadas de os esclarecer os classifica mal, a meu ver.” Isto é o que acontece quando se deixa de lado o meio-termo moral, um dos extremos, os ímpios, colocarão todos os pecadorezinhos menores do seu lado, aliviarão sua consciência de crimes enormes justificando-se por causa de pequeniníssimas transgressões disciplinares dos outros. No entender de Montaigne nós classificamos mal as pessoas moralmente. Isto se deve, moralmente, a dicotomia falsa, exclusão do meio-termo ou maniqueismo. Que uma relativização moral é usada para classificar as almas humanas está implícita em grandes tradições religiosas, por exemplo, no Islam, onde Mohamed no Corão diz que: “Há distintos graus (de graça e de condenação), aos olhos de Deus, porque Deus, bem vê tudo quanto fazem”.
 
                      Resta sabermos porque esta visão não se difundiu tanto quanto deveria.

 
                     
  Voltando a Dante, que a ambientação do além não poderia ser considerada como literal, e que a posição das almas nos vários círculos topográficos era na verdade uma classificação hierárquica é explicitado no final do livro, na terceira parte, sob o subtítulo de Céu. É dito a ele por sua amada Beatriz que: “...as almas que viste nesta esfera a ela não estão circunscritas; mas o estarem aqui indica A GRADAÇÃO DE SUA BEATITUDE. Este é o modo de fazer com que teu entendimento penetre tais coisas, pois o ser humano aceita pelos sentidos antes de fazê-lo pelo espirito.” Mais claro impossível: todo o inferno, purgatório e paraíso são representações imagéticas para que Dante possa compreender pelos sentidos o que seria dificílimo compreender apenas pela razão. Um estuprador e um santo podem estar num mesmo local geográfico aqui na terra, mas espiritualmente estarão em esferas morais distintas.


Céu e inferno são metáforas de níveis morais.
 
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Continuará, um dia...
 
ABSOLUTUM